Uma das orientações básicas de um trabalho de terapia é permitir à pessoa aprender a lidar com a realidade. Mas como saber como lidar com a realidade se não sabemos o que ela é exatamente? Isso pode parecer absurdo, afinal sabemos o que é a realidade, ela está dada, é óbvia: é isso tudo que me circunda, a casa, as pessoas, o mundo. Mas essa é uma premissa profundamente equivocada, pois apesar da realidade estar realmente existente e nos circundar de alguma maneira, nossa capacidade de vê-la, por padrão, está completamente tomada e distorcida pelo inconsciente, segundo as observações do psicólogo suíço Carl G. Jung.

Mesmo para quem admite uma pequena possibilidade dessa distorção ser verdadeira, pode ser difícil crer que a realidade está de fato completamente intoxicada pelo nosso inconsciente, e que dela vemos, se vemos, uma pequena e superficial dimensão.

Assim, pensamos que Pedro é Pedro, mas não isso passa de uma idéia que temos de Pedro. Uma idéia que tem alguma relação com quem Pedro é, mas que é mais fundamentalmente uma distorção do que ele é. Uma projecão inconsciente (o pleonasmo aqui é proposital, para ressaltar a natureza do fenômeno). É uma suposição baseada no que sabemos ou lembramos de Pedro, mas a própria ciência e/ou memória que temos de Pedro já nasceu distorcida, pois vemos e lembramos o que está associado primariamente com nossas tendências inconscientes.

“O que Paulo diz sobre Pedro nos diz mais sobre Paulo do que sobre Pedro.”
Baruch Spinoza (em “Psychoanalisis and Religion”, Erich Fromm, pg 56)

Assim, de acordo com Jung, enquanto não vemos o que nosso inconsciente projeta (todo o tempo em tudo e em todos), não saberemos o que é a realidade. E sem saber o que ela é, como poderemos saber como lidar com ela?

Eis um trecho riquíssimo sobre esse tema, do livro “A Natureza da Psique“, de Carl Jung, sobre o que vemos, o que projetamos, o que é realidade e como podemos vir a fazer contato verdadeiro com ela:

(…) “Da mesma forma que nos inclinamos a supor que o mundo é tal como o vemos, com igual ingenuidade supomos que os homens são tais como os figuramos. Infelizmente ainda não existe, aqui, uma Física que nos mostre a discrepância entre a percepção e a realidade. Embora seja muito maior a possibilidade de erro grosseiro neste caso, do que nas percepções sensoriais, nem por isto deixamos de projetar nossa própria psicologia nos outros, com toda a tranqüilidade. Cada um de nós cria, assim, um conjunto de relações mais ou menos imaginárias, baseadas essencialmente em projeções deste gênero.

Nos neuróticos são até mesmo freqüentes os casos em que projeções fantásticas constituem as únicas vias possíveis de relações humanas. Um indivíduo que eu percebo principalmente graças à minha projeção é imago [imagem] ou um suporte de imago ou de símbolo. Todos os conteúdos de nosso inconsciente são constantemente projetados em nosso meio ambiente, e só na medida em que reconhecemos certas peculiaridades de nossos objetos como projeções, como imagines [imagens], é que conseguimos diferenciá-los dos atributos reais desses objetos. Mas se não estamos conscientes do caráter projetivo da qualidade do objeto, não temos outra saída senão acreditar, piamente, que esta qualidade pertence realmente ao objeto. Todas as nossas relações humanas afundam em semelhantes projeções e quem não tivesse uma idéia clara deste fato, em sua esfera pessoal, bastar-lhe-ia atentar aparar a psicologia da imprensa dos países beligerantes. Cum grano salis vêem-se sempre as próprias faltas inconfessadas no adversário. Todas as polêmicas pessoais disso nos fornecem exemplos eloqüentes. Quem não possuir um raro grau de autocontrole não pairará acima de suas projeções mas, na maioria das vezes, sucumbirá a elas, pois o estado de espírito normal pressupõe a existência de semelhantes projeções. A projeção dos conteúdos inconscientes é fato natural, normal. É isto o que cria nos indivíduos mais ou menos primitivos aquela relação característica com o objeto, que Lévy-Bruhl designou, com acuidade, pelo nome de “identidade mística” ou “participação mística”169. Assim, todo contemporâneo normal que não possua um caráter reflexivo acima da média, está ligado ao meio ambiente por todo um sistema de projeções inconscientes. O caráter compulsivo de tais relações (ou seja, precisamente o seu aspecto “mágico” ou “místico-imperativo”) permanece inconsciente para ele, “enquanto tudo caminhar bem”. Mas logo que se manifestam distúrbios paranóides, todas estas vinculações inconscientes de caráter projetivo aparecem sob a forma de outras tantas vinculações compulsivas, reforçadas, em geral’ por materiais inconscientes que, notemo-lo, constituíam, já durante o estado normal, o conteúdo dessas projeções. Por isto, enquanto o interesse vital, a libido, puder utilizar estas projeções como pontes agradáveis e úteis, ligando o sujeito com o mundo, tais projeções constituem facilitações positivas para a vida. Mas logo que a libido procura seguir outro caminho e, por isto, começa a regredir através das pontes projetivas de outrora, as projeções atuais atuam então com os maiores obstáculos neste caminho, opondo-se, com eficácia, a toda verdadeira libertação dos antigos objetos. Surge então um fenômeno característico: o indivíduo se esforça por desvalorizar e rebaixar, o máximo possível, os objetos antes estimados, a fim de poder libertar deles a sua libido. Como, porém a precedente identidade repousa sobre a projeção de conteúdos subjetivos, uma libertação plena e definitiva só pode realizar-se, se a imago refletida no objeto for restituída, juntamente com sua significação, ao sujeito. Produz-se esta restituição, quando o sujeito toma consciência do conteúdo projetado, isto é, quando reconhece o “valor simbólico” do objeto em questão. [508] É certo que essas projeções são bastante freqüentes e tão certo quanto o desconhecimento de sua natureza. Sendo assim, não devemos nos admirar de que as pessoas desprovidas de senso crítico admitam, a priori, e como evidente à primeira vista, que, quando se sonha com o Senhor X, esta imagem onírica denominada “Senhor X” é idêntica ao Senhor X da realidade. Este preconceito está inteiramente de acordo com a ausência geral de espírito crítico que não vê diferença entre o objeto em si e a idéia que se tem dele. Considerada sob o ponto de vista crítico, a imagem onírica — ninguém o pode negar — guarda apenas uma relação exterior com o objeto. Na realidade, porém esta imagem é um complexo de fatores psíquicos que se formou espontaneamente — embora sob o influxo de certos estímulos exteriores — e, por conseqüência, se compõe, essencialmente, de fatores subjetivos, característicos do próprio indivíduo e que muitas vezes não têm absolutamente nada a ver com o objeto real. Compreendemos sempre os outros como a nós mesmos, ou como procuramos compreender-nos. O que não compreendemos em nós próprios, também não o compreendemos nos outros. Assim, por uma série de motivos, a imagem que temos dos outros é, em geral, quase inteiramente subjetiva. (…)”
— Carl Jung, em “A Natureza da Psique”

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