“Está na natureza dos corpos políticos sempre ver o mal no grupo oposto, exatamente como o indivíduo tem uma tendência incorrigível de se livrar de tudo que ele não sabe e não quer saber sobre si mesmo colocando-os em outra pessoa.

Nada tem um efeito mais divisionista e alienador sobre a sociedade do que essa complacência moral e falta de responsabilidade, e nada promove mais o entendimento e a reaproximação do que o mútuo recolhimento das projeções. Esse corretivo necessário requer auto-crítica, porque uma pessoa não pode simplesmente dizer à outra que os recolha. Ela não reconhece pelo que ele é, da mesma maneira que não reconhecemos em nós. Só podemos reconhecer nossos preconceitos e ilusões quando, de um conhecimento psicológico mais amplo de nós mesmos e dos outros, estivermos preparados para duvidar da correção absoluta de nossas suposições e compará-las cuidadosa e conscientemente com os fatos objetivos.”

CARL JUNG, em “THE UNDISCOVERED SELF”

Esse trecho da obra de Jung me lembra uma frase-mantra do monge zen Thich Nhat Hanh, que diz “Ouça profundamente“. Ouça profundamente tudo. Todos os momentos que você vive. Todas as pessoas. Você mesmo.

Numa crise política, é curioso que quanto mais as projeções pessoais são presentes, menos a essência da manifestação política consegue, de fato, se manifestar. A manifestação só se faz necessária porque há uma vontade de defender e/ou enaltecer alguma questão política e também porque há uma vontade de comunicar isso a outras pessoas. Se todos já concordassem a respeito dessa questão política, não haveria necessidade de manifestação. As pessoas só se manifestam pela democracia quando há necessidade disso ser manifestado, ou por uma ameaça iminente, ou por necessidade de divulgar e conquistar mais pessoas para a democracia. Mas quanto menos eu consigo ver e ouvir o outro, e quanto mais eu projeto minhas intolerâncias e violências nesse outro, menos ele vai me ouvir também. Menos vamos nos comunicar de verdade. E menos a manifestação vai acontecer de fato.

Jung é uma das grandes referências sobre a projeção, um dos mecanismos de defesa mais primários e mais universais do ser humano. Como ele mesmo diz no trecho acima, um mecanismo aparentemente incorrigível. Parece ser uma tendência obscura da mente projetar no outro o que não aceitamos em nós mesmos. E outra tendência tão ou mais forte do que é essa é admitir que tal projeção existe, e que nossas certezas absolutas sobre nós mesmos e sobre o outro estão seriamente condenadas. Por nosso próprio comportamento cego e apaixonado.

Um momento de crise é um momento de refletir. Todas as manifestações políticas são válidas, desde que haja um respeito mútuo e a observação das liberdades e responsabilidades. Mas a crise deste momento, que poderíamos chamar de crise de corrupção endêmica, é também uma crise de diálogo pessoal, crise de sombra, crise de projeção.

Ainda estamos longe de uma educação que ajude a todos esse auto-aprendizado que Jung exalta. Mas aqueles de nós que já temos essa possibilidade, é obrigação fazermos com resiliência moral e responsabilidade. Isso é o que vai promover entendimento e reaproximação onde for possível. Esse é um trabalho por e para si mesmo, com enormes reflexos no mundo.

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