“Em maior ou menor grau, as primeiras maneiras em que o mundo faz sentido para nós continuam a sustentar todas as nossas experiências e ações sebsequentes.”
— R.D. Laing
“A neurose é sempre um substituto para o sofrimento legítimo”.
— Carl Jung
Há mais ou menos uns dois meses li uma carta de aposentadoria de um ex-professor meu, da época da faculdade, e uma coisa me chamou a atenção: ele se negou a escrever formalidades e chavões de despedidas, e atacou frontalmente o que chamava de fingimento permanente e coletivo, de todos, sobre o que fazem, o que vivem, o que falam. Fiquei pensando na extensão desse fingimento, porque real ele me parece, muito. O quanto fingimos? O quanto de um dia inteiro é fingimento, de menor ou maior grau? O quanto é sincero, autêntico, franco, aberto?
Um psicólogo americano, Jeffrey Lance, escreveu o texto abaixo, que reproduzo com o intuito de refletirmos sobre a autenticidade (ou não) da nossa vida, com os outros (num mundo de permanente contato virtual, pela Internet), mas principalmente com nós mesmos, em nossa vida íntima interior, individual, silenciosa.
“O mundo está em sofrimento. O mundo está tentando fingir que não está sofrendo. Desesperadamente tentamos esconder este fato uns dos outros e de nós mesmos. Agimos como estranhos para nós mesmos, e na verdade estamos sendo estranhos para nós mesmos. Negamos nosso sofrimento para os outros e para nós mesmos, e quando perguntados “como você está”, dizemos “tudo bem”. Como chegamos a essa experiência não-autêntica dos outros e de nós mesmos? Um jeito de entender isso é ver nossas vidas em parte como uma tentativa duradoura de bloquear e evitar experiências que possam reativar dores e expectativas reprimidas e dissociadas há muito tempo. A dor e as expectativas que foram muito estressantes para lidar, quando aconteceram, na idade que tínhamos. Sem ter uma testemunha esclarecida para empatizar com nossa dor e nos ajudar a processá-la, nos tornamos dormentes para ela. Em outras palavras, esta dor está reprimida, dissociada, evitada, negada e não-processada. Quem sabe quanto dessa evitação de dores não-processadas motiva nossas interações com os outros, esposas, esposos, família. Meu palpite é mais do que queremos imaginar.
Adultos que fecharam sua consciência de suas próprias necessidades e sentimentos carecem de empatia, compaixão e compreensão de si mesmos e dos outros. Isso não é apenas um estado perigoso das coisas, mas também leva a um sentido de isolamento, irrealidade, superficialidade e relacionamentos não-autênticos com outros seres humanos. Estamos basicamente vivendo uma mentira conosco e com os outros sobre nossa dor e sofrimento. (…)”
— Jeffrey Lance, PhD
Mais e mais, o trabalho da terapia vem consistindo em re-estabelecer esse contato da pessoa consigo mesma, com seus próprios pensamentos, seus próprios sentimentos e suas próprias ações, autênticas. E isso está muito longe de ser tão simples ou rápido quanto parece. Aparentemente, mas só aparentemente, a maioria das pessoas julga saber muito bem o que pensa, o que sente, o que faz ou deixar de fazer. Muitas delas ainda afirmando fazer por vontade própria e consciente, como uma declaração original de autenticidade. Mas geralmente o que existe é uma negação bastante calcificada, que pode ser identificada — sentida e percebida — com o retorno do contato consciente ao que está fragmentado e desconectado.
Por muito tempo habituadas a serem desconectadas, há um gradual “ensurdecimento” para elas, embora todos os sintomas de sua presença continuem fortes, e na maioria das vezes aumentando, o que exige mais esforço e resistência da pessoa. O fingimento é apenas uma camada de esforço e resistência permanente, que contribui para a perda gradual de consciência e contato. Enquanto as necessidades e questões pendentes continuam vivas no interior de cada um, o fingimento produz um atrofiamento das capacidades de consciência e contato. Resgatar a consciência de si mesmo e deixar-se (conscientemente) entrar em contato consigo mesmo, com quem se é, com o que se sente, pensa e faz, é o retorno à sanidade, à autenticidade e à liberdade.
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Fonte: TherapyInLa.
Imagem: Jordan Whitfield.